quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Bonga no prémio nacional de cultura

Entrevista com Barceló de Carvalho Bonga


A música angolana está de boa saúde

O laureado do prémio nacional de cultura e arte de 2010, na categoria de música, Barceló de Carvalho Bonga, afirmou que a música angolana está de boa saúde. Numa entrevista concedida a este jornal, Bonga falou do seu percurso de 38 anos como músico, os seus maiores sucessos, o valor do premio atribuído, as barreiras algumas ainda por remover, o seu regresso ao país, o contributo dado pela música nos 35 anos de independência e a perspectiva do seu próximo disco. Tudo isso e muito mais pode ser lido nestas páginas.

Por Emanuel Bianco

ACapital - Este é um prémio merecido?

Barceló de Carvalho Bonga - De há tanto tempo a esta parte; é um prémio merecido, como não podia deixar de ser, desde o «Angola 72», mas principalmente pela constatação que tem sido feita por esse povo da nossa terra. Não quero falar dos estrangeiros, quero falar daqui, do impacto criado pelas minhas obras musicais que eu edito, as minhas entrevistas, e, principalmente da recordação de uma vivência de alguns anos atrás. Tudo isso tem sido aplaudido com muito calor mesmo por este povo.

A.C. - Já teve outras menções do estado angolano ou esta é a primeira?

B.C.B - Já tive outras menções da cultura, não é verdade, do governo civil de Luanda e várias outras coisas. Portanto, muita coisa que tem sido feita. Não há problema nenhum.

A.C. - Não considera esse um dos momentos mais marcantes da sua carreira?

B.C.B - É dos mais marcantes da minha carreira absolutamente. A oficialidade veio em reconhecimento do valor com este prémio que é um dos mais significativos da cultura da nossa terra. Isto é muito importante, é grande.

A.C. - Por altura das comemorações do 35º aniversário da independência, como considera o actual momento da música angolana?

B.C.B - A música angolana está de boa saúde, principalmente com os nossos jovens aguerridos e a fazerem outras modalidades, mas sempre com o Semba por cima. E, eu sou um dos mais privilegiados, como referência obrigatória, pela colaboração que dou a todos eles, sem desprimor para qualquer um que tenha esquecido. Esta música vai de vento em pompa, porque estamos a ver que os nossos miúdos estão afincadamente a impor coisa nossa, o que é muito bom, embora, as vezes com uma certa discrepância nas letras, no conceber das coisas, ficam naquela coisa de marido e mulher, da briga familiar e a letra vai se estender um pouco mais, mas isto requer trabalho e com trabalho de todos, inclusive nós que estamos a passar o testemunho, em colaboração com os mais jovens. O que é certo é que não estamos a ser esquecidos, o Burity está ai, o Elias fez o que fez. Também não temos aqui salas de espectáculos, com espectáculos constantes dessa musicalidade angolana e depois estamos também um pouco resumidos nas datas históricas, uns são chamados e outros são excluídos. Mas ainda há muita coisa por fazer e é aquilo que eu tenho dito que «não se deixem» levar pelo adormecimento um tanto ou quanto complicado que faz com que as coisas se compliquem ainda mais. É preciso que cada um acorde e faça o seu trabalho e há muitos que estão a fazer isso, mas ajudados, é claro, porque hoje em dia sem patrocínio as coisas não funcionam e é preciso ter atenção a isso.

A.C. - Referiu-se a um elemento importante que tem a ver com a letra da música da nova geração. Como músico da velha geração qual é o seu contributo numa altura em que a sociedade critica o conteúdo, mormente a música Cú Duro, onde alguns conteúdos ferem a moral da sociedade?

B.C.B - AH… isso sempre houve. Não vamos ter memória curta. Em todas as épocas surgiram músicas assim, umas até com teor pornográfico. Mas o nosso povo é que tem de ter a capacidade de saber discernir aquilo que vai consumir. Não vamos a ficar a condenar sistematicamente cada coisa que vem, tanto mais que somos maiores em saber ver as coisas e temos por isso a capacidade de discernir, o que é bom e o que é mau.

«Não sou embaixador oficial de coisa nenhuma, é bom frisar isso. O que é certo é que a música que faço no exterior, automaticamente estou a representar o povo da nossa terra. Isto é que me dá força, responsabilidade, perseverança de continuar e sobretudo de atinar muita mais ainda e melhor.»

A.C. - Na sua condição de embaixador da música angolana, como a sente no estrangeiro?

B.C.B - Esta condição foi-me dada pelo povo de Angola. Não sou embaixador oficial de coisa nenhuma, é bom frisar isso. O que é certo é que a música que faço no exterior, automaticamente estou a representar o povo da nossa terra. Isto é que me dá força, responsabilidade, perseverança de continuar e sobretudo de atinar muita mais ainda e melhor. Estar lá fora e cantar música daqui do jeito que eu aprendi isso é melhor e sem imitação possível, porque eu não vou ficar na imitação daquela coisa do Europeu para introduzir na nossa música original, senão a «dicanza» já não tinha cabimento. E continua a ter cabimento, principalmente para cantar semba. Isso dá-me imensa satisfação, porque estou em contacto permanente com a terra e com esse grande povo que nos ensinou estas grande coisa e que têm a sua raiz aqui.

A.C. - Para quando o próximo disco?

B.C.B - Foi feito um Best Of Bonga, mas não foi da minha escola, foi o agente artístico que fez aquilo. O que é certo é que temos já uma na manga. Mas quem me dera poder gravar um disco do Bonga pela primeira vez em Angola, porque eu já gravei em quase tudo que é sítio, em Cabo Verde, no Brasil, em Moçambique o «Massemba 87 com o grupo Mbila Moçambicano do Costa Neto, gravei em Portugal, na França e na Holanda, gravei na Suíça na Alemanha, mas nunca gravei um disco em Angola. Estava com a intenção de gravar aqui um disco inédito para ir buscar aquelas coisas vividas aqui nos Musseques do antigamente, recordar coisas ainda muito bonitas da nossa resistência, sócio-política e cultural. Se for possível faço e se não vai ter que ser feito mesmo noutro sítio, mas sempre retratando sempre a terra de origem.

A.C. - Qual é a dificuldade de gravar em Angola?

B.C.B - A dificuldade é que há umas portas que são abertas, outras entreabertas e outras fechadas. Para bom entendedor meia palavra basta.

«Sou um criador, um homem que já tem coisa comprovada. Não acredito que haja nenhum angolano com mais 400 músicas, e eu tenho quase 500, mas isso só é dito lá fora, porque temos algum problema de falar as coisas como elas são.»

A.C. - Bonga tem as portas fechadas em Angola?

B.C.B - Para determinados projectos havia e continuam haver portas fechadas, porque existe sempre no patrocinador a ideia de que o patrocinador tem que ter uma voz activa no executante, o que acho ser ridículo. Quem patrocinou fique a espera do elemento que se vai compor e não ser crítico. Isto é para a juventude que está confrontada com o patrocinador que as vezes vêm dar dicas o trabalho que vai ser e eu tive já essa experiência num passado recente e impus-me contra isso. Quem vai patrocinar uma obra vai porque está em causa o artista, o seu timbre de voz, o seu talento, ele. Este é um recado que dou aos patrocinadores que as vezes se impõem e misturam-se também. Quer o patrocinador político, quer o cultural as vezes um e outro estão confundidos, o que fica muito complicado. Este recado é também para alguns artistas, que, as vezes, são patrocinados com alguma ingerência abusiva dos patrocinadores na sua obra de origem. Eu não vou entrar nesta e quem tiver de patrocinar o Bonga vai ter que ser na base de que sou um criador, um homem que já tem coisa comprovada. Não acredito que haja nenhum angolano com mais 400 músicas, e eu tenho quase 500, mas isso só é dito lá fora, porque temos algum problema de falar as coisas como elas são, porque houve algum tempo em que foi diminuído o fulgor deste artista que eu sou, por conveniências eu acho que chegou o momento de se afirmar isso numa altura em que a família angolana quer saber que o Bonga recebeu um prémio que deveria lhe ser dado já há muito tempo. Na sociedade de autores e compositores lá fora dizem que o «kota» tem mais 400 músicas e isso é um bico dobra. Tenho também 6 ou 7 músicas de filmes que batem no estrangeiro e nós ficamos com algum receio de falar disso. Mas isso não gabarolice ou para me evidenciar. É real e está lá nas biografias que são escritas.

Quando estou a colaborar com o jovem compositor e interprete a intenção é dar continuidade na conservação de coisas nossas, ainda que de vez enquanto ele tenha que pegar num ou outro instrumento fora do nosso contexto, porque Angola também não pode ficar fechada num gueto. Mas é bom que se saiba que o que é nosso é mesmo bom. A experiencia que eu tenho do exterior prova isso. Como é que eu estou a cantar há 38 anos sem esmorecimento e sempre no top? Conservar isso é muito complicado. Essa questão é que a juventude que está a fazer música devia nos colocar. Alguns só têm um ano de carreira e pensam que já são vedeta. Isto não é nada. Vai levar tempo até se impor. Depois temos pela frente a segregação. Há artistas que são humilhados no estrangeiro e obrigados a fazer outra coisa. Conheci artistas do ex-Zaire, do Congo que foram obrigados a mudar o estilo de música e cantarem o Regue, o Salsa, em detrimento do Sukussa, em detrimento da música do Congo que é linda e maravilhosa. Depois temos alguns complexos que vão nos dando. Água mole tanto bate em pedra dura até que fura e acaba por furar a mentalidade destes jovens que não têm força suficiente nem apoios para continuarem com as suas obras defendendo a nossa imensa.

A.C. - Quem tem sido o seu suporte durante esses 38 anos de carreira?

B.C.B - Ninguém. Tem sido o Bonga com a sua têmpera, com a sua maneira de ser, com a sua irreverência com a sua luta, com a sua determinação. Tenho uma casa de discos a Lusáfrica que é a mesma da Cesária Évora. Depois tenho o empresário, que são mulheres francesas que têm uma casa a «Trois the family» e quem quer o Bonga liga para lá e arranja os espectáculos. Nunca tive patrocínios.

«Nós temos de ser um povo livre e detentor de uma opinião própria.»

A.C. - Dos seus discos qual é o mais destacado?

B.C.B - Foi o primeiro disco que foi reeditado mais vezes. Se não tivesse de repartir o meu dinheiro com os outros eu estaria rico com o «Angola 72». Aquele disco vendeu, revendeu e outros artistas nacionais e estrangeiros interpretam essa música. Até trouxeram para cá e por uma questão ética o Bonga devia ser convidado. Quem fez esses artistas cantar a música Elia fui eu. Vieram para cá venderam mais de 400 mil discos divulgando essa música. É preciso que não estejamos muito afastados da realidade, mesmo quando nos querem desinformar ou desacreditar por razões óbvias, mas é bom que o povo tenha a sua reflexão, e não pois chegou a hora de dizer que está aqui um prémio. Mas não é só um prémio, é dos prémios pesados que custou a vir. Mas está aqui e outros mais virão, na liberdade, no respeito pela emancipação das pessoas e da opinião própria. Quando um estrangeiro canta a nossa música é quando as pessoas dão conta que é mais um sucesso do Bonga, mas entretanto já houve mais 50 músicas que o Bonga cantou, algumas com intervenção directa com aquelas coisas que se dizem que as pessoas entendem muitíssimo bem, mas as vezes não se liga. Começa mesmo pelo indivíduo que deve passar a música, que num disco de 14 faixas escolhe uma que passa, aquela que convém. Nós temos de ser um povo livre e detentor de uma opinião própria.

A.C. - Algumas das suas músicas ainda são polémicas?

B.C.B - Não é que algumas ainda são polémicas. Algumas ainda não passam. Não convém passar. Se fosse aqule a querela de mulher, a mulher que «corneou» o marido, ai isso passa. É a tal facilidade da vivência em que promovem-se determinados temas que não são sérios. Mas se se falar da violência doméstica, por exemplo uma música que a Patrícia Faria que eu fiz depois do «caroço quente», passou despercebida, porque se calhar alguém quer voltar a bater na mulher. As vezes, rio-me porque provoco algumas situações não para a intriga, mas para promover o diálogo para o conhecimento maior do que nós somos, para melhor avançarmos. Não podemos passar o melhor tempo da nossa vida só com os estrangeiros, porque há grandes riscos de só imitar o estrangeiros e só dar a nossa energia a eles. É por isso que eu compenso com a música do país de origem porque sabe que eu estou muito mais tempo fora do que aqui. Vivi aqui 23 anos seguidos e mais de 40 lá fora.

A.C. - Para quando o regresso para Angola?

B.C.B - Desse regresso há outros que deviam responder no meu lugar.

A.C. - Nomeadamente?

B.C.B - Nomeadamente, os grandes responsáveis, os consórcios industriais, económicos e financeiros que têm facilidades e que podem dizer que há um espaço que pode ser ocupado por este senhor e que pode ensinar o que ele viveu para essa juventude conturbada e preocupada com outras coisas supérfluas. Mas estas iniciativas têm de vir de gente com têmpera. Tínhamos antigamente aqueles velhos de Bengala da enciclopédia, do ensinamento. e o meu avô era destes mais velhos. Por isso eu sou privilegiado em matéria de educação tradicional da África. Mas nós ficamos confinados no nosso intelectualismo exibicionista, de coisas mais do estrangeiro do que propriamente daqui. Por isso é que se questiona quem é o africano, se ser africano é sempre pejorativo, sempre está carregado de SIDA, é corrupto? As televisões quando falam da SIDA é um preto, nunca é um branco, quando foram os brancos que começaram nos Estados Unidos.

“Hoje tenho consciência da participação e do contributo que foi dado através desse choro chorado pela música de intervenção que falei. Se tive coragem de falar contra o colono e das atrocidades que cometia aqui contra o nosso povo, também tive coragem de falar dos nossos «patrícios» que não era para se guerrear um ao outro que se fez a «dipanda».”

A.C. - Em 35 anos de independência de Angola, a sua música também contribui?

B.C.B - Hoje não tenho dúvida e os políticos corajosos falam disso. A música passava em indolesi, mobilizou muitos jovens para esfera política e não pedi nenhum dividendo. Fiz o que fiz e não estou arrependido de coisa nenhuma. Hoje tenho consciência da participação e do contributo que foi dado através desse choro chorado pela música de intervenção que falei. Se tive coragem de falar contra o colono e das atrocidades que cometia aqui contra o nosso povo, também tive coragem de falar dos nossos «patrícios» que não era para se guerrear um ao outro que se fez a «dipanda». Dai, fui impedido de falar na rádio e na televisão, mas dói queima de pouca dura, porque de logo a seguir se reconheceu e «cacheche» dançavam a música do Bonga. Hoje vi tudo isso e faço uma síntese de que continuo a ser filho querido desta terra. Sempre me tiveram no bom caminho, me apoiaram à distância e nunca me deram «mau-olhado».

A.C. - Foi convidado oficialmente para as comemorações dos 35 anos de independência?

B.C.B - Não fui convidado. Eu vim expressamente para receber este prémio e dizer aqui o meu muito obrigado pelo reconhecimento do meu valor. Vou-me embora porque não há uma outra perspectiva. Tenho outras coisas a fazer, como um espectáculo agora a fazer em Zurique nos dias 13 e 14, mas antes vou estar num Coktail da Embaixada de Angola em Portugal, mas não me falaram de nenhum espectáculo aqui.

A.C. - Uma mensagem para os seus fãs, os velhos amigos, todos aqueles que reconhecem o valor do Bonga na cultura angolana com o prémio que acaba de receber.

B.C.B - É muito lindo e muito querido. Deixo todo o meu carinho par este grande povo que me acena na rua quando vê, que me identifica facilmente que está comigo e que me canta as músicas que as vezes pergunto como estes sabem disso. Até os vendedores de rua vêm com discos piratas para eu autografar e depois vendem. É uma imensa alegria, por saber que fora daqui e muito longe mesmo estão a me dar força. A todos eles devo dizer que o meu carinho está ai, senão eu já tinha esquecido cantar a música de Angola e de África, porque a minha vida é toda fora, ganho fora, os meus espectáculos são lá fora. E depois não fico minimamente aborrecido com alguns artistas, sobretudo os estrangeiros brasileiros e também americanos que quando vêm aqui ganham somas que nem ganham no Brasil e na América. Quando estou com os artistas entre nós pergunto o que é isso e vejo que também não é bem assim e trato com eles e traga o exemplo de um «kota» mais velho que não quer que as coisas continuem assim. O que será do Bonga quando vir para cá, vai fazer um espectáculo por ano, enquanto lá fora faço 10 espectáculos por mês. E deixo cair uma carreira e vir só para dizer que sou nacionalista? Há muita gente que gosta só de mostrar por mostrar. Mas eu sinto-me forjado num homem maduro, com uma atitude que vê-se na maneira de ser e de se relacionar com os outros todos, e sobretudo continuar lá fora a fazer os discos que continuam a ser vendidos, porque o nome está feito e não foi ajudado por determinadas pessoas que depois querem tirar dividendo, dizem que me deram força, mas que fugiram na altura crítica. Vou continuar a minha via das edições musicais, das comparticipações de outras pessoas que também têm coisas para dizer e depois estou bem relacionado com o mundo. Ai sim, está a nossa bandeira, a nossa nacionalidade e o prestígio desta nossa terra que merece de todos nós um bocadinho de carinho, de afecto, principalmente dos responsáveis que devem dar conta de algumas situações que são ridículas. Todos nós devemos dar as mãos se é do norte ou do sul. Há um momento em que devemos reflectir porque o mundo esta a degenerar e a cair um pouco, mas nós ainda temos esta força para segurar tudo isso.

FIM

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